A
Seca que já perdura há um ano no Rio Grande do Norte, além das perdas
materiais, está produzindo uma espécie de angústia coletiva nos
produtores rurais. Da região Central, sob a imponência do pico do
Cabugi, passando pelo Alto Oeste, por onde tradicionalmente começa a
quadra chuvosa, até os municípios que compõem a chamada tromba do
elefante, na divisa com a Paraíba, todo pequeno prenúncio de chuva é
suficiente para que os agricultores larguem tudo e empreendam uma
corrida desesperada para preparar as terras que receberão as sementes de
milho e sorgo distribuídas pelo Governo do Estado.
Para
descobrir porque um problema secular como a Seca continua sem solução,
amarrando o Estado à vergonhosa dependência dos carros-pipa e liquidando
as reservas econômicas acumuladas por gerações de uma mesma família de
produtores rurais, a Federação da Agricultura (FAERN) organizou uma
expedição que percorreu aproximadamente 1.200 quilômetros de rodovias
federais e estaduais, embocando por estradas vicinais pedregosas,
levando no ‘lombo’ mais de 40 jornalistas, entre repórteres, fotógrafos e
cinegrafistas.
Durante
três dias, começando sempre às 5 da manhã até o entardecer, milhares de
fotos foram tiradas, dezenas de depoimentos colhidos, horas de vídeo
gravadas, em uma expedição onde os profissionais de imprensa tiveram a
liberdade de conduzir seus trabalhos com independência, sem
interferências externas de prefeitos, partidos ou políticos. A única
condição imposta pelo roteiro foi buscar propriedades produtivas com
impacto direto na vida das populações, evitando os dois extremos da
paisagem rural: os assentamentos rurais atingidos pelo Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de um lado, e os
projetos irrigados com escala de exportação, de outro.
Desde
o início ficou bastante claro que o objetivo da viagem se debruçaria
nos efeitos da Seca sobre produtores tradicionais, que efetivamente
movimentam a economia agrária do Estado com a produção de leite e carne,
e que estão perdendo tudo com a estiagem. E tentar explicar porque essa
tragédia anunciada ocorre ciclicamente sem que as autoridades
interfiram decisivamente para mudar essa realidade.
Postas
as condições da expedição, a FAERN só estabeleceu rápidos contatos com
as lideranças políticas nas Câmaras Municipais dos municípios
previamente agendados, mas a prioridade absoluta foi concentrada no
roteiro de campo, no depoimento dos produtores, na visita às
propriedades, na visão deprimente dos cemitérios de animais comuns em
todas as regiões visitadas.
A
primeira parada foi em Lajes, na região Central Potiguar, a 125 km de
Natal, seguida de Angicos e Assu. No dia seguinte foi a vez de Apodi, no
Oeste potiguar, terminando em Pau dos Ferros, na divisa com a Paraíba.
Um dia inteiro para cada região, uma viagem relâmpago, é verdade, mas a
única (e inédita) maneira de conseguir arrastar para fora das redações o
maior número possível de jornalistas.
No
domingo, ao encerrar a expedição, após passagem por Caicó, o presidente
da FAERN, José Álvares Vieira, fez uma avaliação do que foi visto ao
longo da viagem e com a voz embargada, admitiu: “Antes de pegarmos a
estrada, eu esperava encontrar uma realidade um pouco diferente depois
das últimas chuvas, mas não imaginava que as coisas estivessem tão
ruins”.
Tragédia anunciada
Longe do campo - Um das conclusões foi que, mesmo se
restabelecendo neste ano, o que é uma possibilidade bastante discutível,
uma década será necessária para recompor os estragos produzidos pela
atual estiagem, cuja comparação com as Grandes Secas da história já
deixou para trás vários eventos registrados nos últimos 50 anos.
A
segunda conclusão da expedição, segundo a avaliação final, foi que a
assistência técnica no campo, por parte dos órgãos competentes, deixa
muito a desejar - não é profissional, sistemática e continuada e, quando
ocorre, limita-se a uma visita, um cafezinho e só.
Mão-de-obra - Ficou bastante clara também a decadência das propriedades rurais. Com a estiagem prolongada, os produtores perderam quase todos os empregados e encontram dificuldades, pagando R$ 50 reais de diária,
até para conseguir alguém disponível para cortar o xique-xique que
alimentará o gado magro que se equilibra sobre as patas. A explicação
para isso foi atribuída pelos produtores, em parte, ao efeito “Bolsa
Família”, que eles admitem ter trazido menos pressão nas relações de
trabalho no campo, mas afastou os trabalhadores daquilo que eles
deveriam mais prezar: o trabalho.
Lentidão - A outra conclusão
veio da boca de prefeitos que recepcionaram a expedição e que se
queixaram da lentidão das ações do Governo Estadual no combate à Seca,
que se limitou a repassar os recursos federais sem se importar muito com
a construção de um plano de prioridades. A falta de projetos
articulados e as incertezas na Secretaria da Agricultura, ainda sob o
comando provisório de José Simplício, foram lembrados.
Milho atrasado -
O atraso com que o milho subsidiado dos estoques da Companhia Nacional
de Abastecimento começou a chegar ao Estado também figurou entre as
queixas dos produtores, que perceberam as dificuldades da Companhia no
Estado em atender o crescimento vertiginoso no número de produtores
cadastrados. De uma hora para outra, os carregamentos que chegavam com
atraso eram disputados às vezes à tapa pelos produtores, afugentando
muitos dos que precisavam desesperadamente do produto.
Leite sumido - O preço pago pelo
Programa do Leite, cujo valor por litro será retomado agora com a
abertura do orçamento, é considerado insuficiente pelos produtores,
cujas produções despencaram no mesmo ritmo com que a produção de mel e
castanha sumiram do cenário agrário da região Alto Oeste.
Sem trânsito - A impossibilidade
de levar seus rebanhos de carreta para alimentá-los em pastagens de
outros Estados, uma das consequências das barreiras levantadas por
Pernambuco e Ceará ao atraso e a desorganização do RN no processo de
controle da Aftosa no Estado, também figurou entre as queixas, desta vez
de produtores com rebanhos maiores.

Dividindo o último gole
BNB -
A burocracia na concessão de crédito pelo BNB também recebeu muitas
críticas dos produtores ouvidos pela Expedição, mas revelou o
endurecimento das exigências do agente financeiro para evitar possíveis
fraudes, ironicamente numa época em que os recursos para a Seca
encontram as menores taxas de juros da história.
Incertezas - Na área rural do
município de Pau dos Ferros, uma chuva de 90 milímetros animou o
produtor Paulo Lucena Costa a pagar um tratorista do próprio bolso a R$
100 por hora para correr o arado por suas terras, preparando o terreno
para o milho e o sorgo que começam a chegar por meio do programa de
distribuição de sementes do Governo do Estado. Se não caírem novas
chuvas logo, Lucena já sabe que o prejuízo é certo.
Cemitérios - Foi com a mesma
ansiedade que, no ano passado, os produtores conseguiram zerar os
estoques de sementes, sem conseguir fazer com que nada germinasse. Sem
forragem e energético para dar aos animais, quase todas as propriedades
produtivas do Estado têm hoje seu próprio cemitério de animais e um
curral onde os últimos esforços são feitos para salvá-los. Um
‘prontoatendimento’, como diz o produtor Francisco Sobrinho Soares, o
Sobrinho do Açude, que acompanha pessoalmente a agonia dos animais que cruzam o seu cercado. Aqueles que não
respondem ao tratamento do Dr. Francisco, nas dependências de seu
“prontoatendimento”, vão para ‘rede’, onde dois pedaços de madeira
retirados de árvores e ligados por um lençol dão algum conforto às
últimas horas do animal. Assim que morrem, praticamente pele e osso,
eles são deixados num terreno próximo, onde os urubus e outros animais
se banqueteiam.
A
Expedição ‘Retratos da Seca’ encontrou diversos desses cemitérios. O
maior deles tinha ossadas e está localizado na Fazenda Pedrinha, de
propriedade dos irmãos Nóbrega. O patriarca Raimundo Belo comprou a
propriedade em 1964, dois anos depois de tê-la conhecido. Com cinco mil
hectares, as terras extremamente pedregosas dali estão atualmente
divididas em três propriedades, cuidadas pelos oito irmãos, todos
vivendo de suas profissões fora e até em outros Estados.
Cama de galinha -
Das 1.500 cabeças de antes da Seca, no começo de 2012, o advogado
Raimundo Nóbrega Filho, um dos proprietários, diz que não há mais do que
500 hoje, num dos casos onde o gado de corte predominou sobre a
pecuária leiteira. Quando a Seca começou, o dono dava palha de cana,
depois passou para torta de algodão, milho e sal em proporções iguais e,
por último, ‘cama de galinha’, uma pasta resultado do excremento da
galinha, proibido pelo Ministério da Agricultura desde 2004, mas
altamente energético.
-
Se tem gente fumando crack, cheirando cocaína por que eu não daria cama
de galinha para o meu rebanho? - desafia Raimundo Nóbrega, que pensa em
mover uma ação judicial por perdas contra o Estado por causa das
barreiras levantadas por Pernambuco e Ceará ao trânsito animal do RN
para aqueles Estados, ainda no ano passado.
- Se foi o Estado que provocou essa situação por não trabalhar como deveria, acho ser meu direito exigir um reparo - sustenta.
Sem
poder levar o rebanho para se alimentar fora dos limites territoriais,
desde então a fazenda não faz outra coisa a não ser aumentar seu já
populoso cemitério.
Dívidas - Os efeitos da
Seca no Rio Grande do Norte não pouparam nem os maiores produtores como é
o caso do emblemático Antônio da Volta, ou Antônio Arruda da Cunha como
é menos conhecido na região de Santana dos Matos, o maior produtor de
leite do Estado. Com processos e manejos considerados sofisticados,
Antônio da Volta come, dorme e vive por meio do negócio que tem 1.176
hectares e outras áreas arrendadas com um respeitável rebanho de 1.500
cabeças de gado, além de outras 1.500 com cabras e ovelhas. Diz o
proprietário, que vive e trabalha na propriedade, que há um ano e meio
ele já teve o dobro de animais. “Eles só não morreram porque eu os vendi
antes”, afirma.
Os
números superlativos do produtor resultaram também numa dívida bancária
de R$ 1 milhão - destes, R$ 700 mil com o BNB, segundo informações
fornecidas por ele mesmo. Antônio da Volta afirma que com os preços
atuais do farelo de soja, do milho e da torta de algodão, receber R$
0,93 por litro de leite do Governo do Estado através do Programa do
Leite seria, no mínimo, uma “piada de mau gosto”.
Com
uma fração mínima dos trabalhadores que tinha até o ano passado, ele
fala das dificuldades que os produtores têm hoje para conseguir alguém
que receba R$ 50 pela diária. “São tantas Bolsas, tantas facilidades,
que o sujeito prefere fazer filhos para receber as Bolsas do Governo
Federal do que segurar no cabo da enxada”, desabafa.
Água, sem comida -
A 15 km da fazenda de Antônio da Volta, em Santana do Matos, está a
fazenda Timbaúba, hoje tocada por Amariles Borba de Albuquerque,
resultado de uma divisão de 6 mil hectares em quatro propriedades. No
centro de tudo isso está uma joia que já pertenceu a Aristófanes
Fernandes, que dá nome ao Parque de Exposições em Parnamirim - um
casarão em estilo espanhol, que apesar de machucado pelo tempo, ainda
guarda a imponência de sua construção original. Até agora, Amariles
ainda não teve coragem de recontar o rebanho, apesar de algum benefício
trazido à propriedade por um açude com capacidade total para três
milhões de metros cúbicos e que nunca secou. “Mas o problema aqui não é a
água, é a comida para o gado”, lembra Amariles. E com um agravante:
“Quando a saída é vender os animais, não tem quem compre ou, quando tem,
eles oferecem valores aviltantes com prazos gigantescos”, afirma.
Embora tenha conseguido comprar algum milho da Conab com ajuda da
cooperativa local. Amariles diz que nunca sequer ouviu falar no programa
de distribuição de volumoso do Governo do Estado.
Esta
é uma propriedade que já sediou os primeiros leilões de gado do Estado,
originando a homenagem a Aristófanes Fernandes, que dá nome ao Parque
de Exposições que sedia anualmente a Festa do Boi. Também está à espera
por dias melhores e dá o tom da tragédia recorrente da Seca.
A Seca acaba com as economias e autoestima dos produtores e liquida com a tradição centenária da luta do produtor no Semiárido.
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